sexta-feira, dezembro 24, 2010

A queda de todos nós.

Acabar de ler o romance de Karleno Bocarro, "As almas que se quebram no chão", há de deixar o leitor com uma sensação de falta de ar, como se levasse um soco no estômago. Mas se o autor atinge-nos de forma tão impactante, muito se deve a seus personagens, especialmente Marcos, uma espécie de Dante moderno aqui levado não ao Paraíso, mas a nulidade satânica.

Antecipo o fim do livro e não falo da essência: um retrato tocante e ao mesmo tempo mordaz de um grupo de amigos perdido entre Berlim e São Paulo, que em busca de uma idéia vaga de liberdade e intelectualismo acaba por mergulhar em um lodaçal de experiências que não trazem nenhum alívio, nenhuma transcendente experiência (sexual ou outra qualquer) o "desraigamento dos sentidos" é apenas um suceder de ridículas apreensões da realidade além do real, e por fim, a covarde tentativa fuga de si mesmo, impossível de realizar-se, sobrando apenas um total embotamento do ser.

Mas se fosse apenas isso, esse degringolar beat de uma geração, o autor seria apenas mais do mesmo, um desses que gostam de exibir a decadência humana como algo inescapável e inerente à nossa índole (o que não deixa de ser verdade!). Tantos no nosso meio literário fazem de tal experiência a prova cabal de nossa pequenez, de nossa decadência e sordidez. Mas Karleno enxerga além.

Em primeiro lugar há situações onde, de forma sutil para o leitor que não estiver atento, percebemos o mal, por toda parte: fétido, rastejante, podre. Insinuado, este mal está no abjeto prédio que os personagens ocupam na maior parte da narrativa quando na Alemanha. O prédio decadente era um suposto prostíbulo para uso de membros da SS à época da guerra e há de se sentir em suas paredes apodrecidas, o mal escorrer e impregnar os personagens. Em uma das cenas mais assustadoras do livro, é possível sentir o cheiro de podridão impregnar nossas narinas.

E mais sutil ainda é a presença da Graça. Eis o ponto. Eis a angústia para nós, que lemos e percebemos o quão próxima ela está do personagem principal e o quanto este tenta macular sua presença. Ela é presente de forma evidente na personagem que paira pelo livro como uma Beatriz no poema. Mas aqui ela não é forte o suficiente para atrair o nosso moderno Dante de suas trevas pessoais e reais. Ou melhor, Luiza, é sim forte, quem é fraco, decadente e medíocre é Marcos em suas decisões, em sua falta de ombridade e maturidade.

Medíocre, eis a palavra, em Marcos nada é real, sincero, puro. Ele não consegue seguir um caminho de sua escolha, está sempre sendo levado pelos outros, não consegue sequer, atingir a decadência marginal e plena como seus amigos de devassidão, mas ao mesmo tempo, e nenhuma surpresa aqui, sequer consegue erguer-se do caos e realizar algo. Tenta a todo custo viver a vida de outros, chegando ao absurdo de tentar vender um manuscrito de um amigo como sendo seu. No sexo, consegue apenas concretizar o ato com uma esquálida filha do sertão nordestino onde é enviado pela burocracia do banco onde trabalha. Seu único esforço concreto, sua única ambição realizada é tornar-se um ninguém.

Muito disse aqui sobre o livro de Bocarro, mas ainda assim faltam palavras sobre a galeria de personagens (dignos do melhor Henry Miller), de sutis e certeiras críticas aos fatos e situações criados pelo desgaste de um país corroído por um regime decadente e em uma espiral de decadência e perda de valores. Quando espelhado ao Brasil, notamos que a experiência européia testemunha a decadência de uma civilização, enquanto aqui, somos tomados pela barbárie inerte.

Bocarro escancara e há de incomodar muitas gentes com seu livro; por mostrar esse hedonismo do feio, a preguiça perante o embate com a vida, o sub-intelectualismo e last but not least, o triste desperdiçar de uma geração perdida em si mesma.

No fundo é torcer; torcer para que Karleno Bocarro seja um daqueles (pois há que se esperar por essa nova geração de escritores, do qual ele é um dos primeiros há aparecer!) de quem poderemos dizer que veio para ficar, que veio para resgatar o melhor da literatura brasileira. Devemos ficar atentos e perspicazes, pois estamos diante de um autor capaz de levar-nos a um topo nunca alcançado antes. De sermos original e finalmente, universais.

domingo, dezembro 19, 2010

Pequena Antologia Pessoal do Melhor (e do Pior) de 2010

Existe coisa mais legal do que fazer listas? Como bem diz o Umberto Eco, somos vidrados nesse negócio de hierarquizar as nossas preferências (e sim, hierarquizar, dividor o joio do trigo, separar o bom do ruim, isso faz parte de nossa experiência humana, por mais que os "mudernos" pensadores digam e ensinem o contrário). Portanto, eis o melhor e o pior de 2010...afinal, para algo ser bom alguma coisa tem que ser ruim.!

Comecemos então pela universo dos livros e editoras;

Não dá pra negar, o quebra pau entre a Record e a Cia das Letras foi o fato cultural do ano! Finalmente o que sempre ficou nos bastidores do mundinho literário veio à tona e, por mais que tentem esconder, vimos o quanto a política interfere na hora de escolhermos nossos "melhores". Esperemos que mais brigas desse tipo ocorram em 2011, afinal, é preciso chacoalhar certas unanimidades!

Ok, isso aqui não é uma escolha tão importante quanto o Jabuti (se é que ele é importante...) então vamos lá:

Em quinto lugar - Contra um mundo melhor - Luiz Felipe Pondé - um ótimo antídoto para levar na mochila na hora de ir para a roda de bar enfrentar os bárbaros do "mundo melhor". Vários sopapos na cara do politicamente correto e um humor de dar orgulho ao velho Nelson.

Quarto lugar - Ligeiramente fora de foco - Robert Capa - houve uma época em que os homens ainda podiam se aventurar, buscar um novo olhar e viver plenamente. A memórias do "ex-hungaro", Robert Capa, são de fazer inveja a qualquer um de nós, filhos da geração sucrilhos.

Terceiro lugar - As almas que se quebram no chão - Karleno Bocarro - Que Chico "Derramado", que Ednei Silvestre! E vocês ainda ficam interessados no que o velhaco do Roth escreve? Ainda babam pelo J. Frazen? Pois deviam olhar com atenção para o próprio quintal e ver que (sim é possível) existe literatura de qualidade neste país de lulismos infernais.

Segundo lugar - Sob o sol de Satã - George Bernanos - Pra quem acha que o cristianismo é uma religião de velhas encardidas ou que só ateus podem criticar o mofo que volta e meia impregna a Igreja, saibam que Bernanos está de volta, e não é fácil ser cristão sob peso de seu olhar. Um desses pequenos milagres editoriais que ocorrem nestas plagas canibalistas.

Primeiro lugar - O Outono da Idade Média - Johan Huizinga - Não tem como negar o marco que é a publicação (e edição) deste que é o melhor livro sobre a idade média já escrito. Sem dúvida, o melhor livro do ano, quiça da década!

E o pior livro lançado no Brasil esse ano é o....Stalin - História crítica de uma lenda negra - Domenico Losurdo - Que dizer de um livro que tenta justificar os horrores perpretados por Koba durante seu "reinado absolutista" na extinta União Soviética? Nada mais deplorável, um livro que só pode ser colocado ao lado dos revisionistas que dizem que não ocorreu o Holocausto.

Para encerrar, um pitaco do melhor livro lançado lá fora: Bloodlands - Timothy Snyder - Um catatau de 500 páginas revela o que todo comunista sabe mas não admite: Nazismo e Marxismo são duas forças irmãs que arrasaram e assassinaram milhões na Europa...mas, graças a certos "arranjos", Stalin conseguiu manter a aura de libertador e salvador da democracia. Para entender como, eis um livro essencial e estupidamente bem escrito!

Música

All right, it's only Rock n Roll, but I like it! A música pop (que é a que importa, folks, deixem de eruditismos e mofo!) parece morta, mas nada como um bando de velhinhos (e alguns jovens talentos, hehe) para mostrar que há vida (inteligente, ácida, redentora...) além do que você baixa para seu Ipod.

Quinto lugar - The Dawg Years - Blaze Foley - Para quem está carente de Johnny Cash, já ouviu tudo do Hank Williams, e está precisando de canções para acompanhar a melancolia de fim de ano, nada melhor do que o "drunken angel" (Lucinda Williams, kids!) Blaze Foley. Gravado de forma caseira entre 1976 e 1978, Foley com 25 anos interpreta canções cruas e intimistas, mas ainda assim com um toque irônico e mordaz (era a época do Watergate). Um diamante bruto da música country.

Quarto lugar - Terra Incognita - Juliette Lewis - Ok garotas, então vocês querem fazer RocknRoll? Então aprendam com Juliette Lewis como revigorar o estilo sem cair em clichês, como prestar homenagem sem plagiar (iggy pop, david bowie, glam rock, T. Rex), como ser sexy sem ser vulgar...Isso que ela acredita na cientologia, imagine se ela fosse uma garota normal!

Terceiro lugar - The Union - Elton John e Leon Russell - A prima-dona presta homenagem a um dos maiores nomes da música country e juntos fazem um dos melhores e mais tocantes álbuns do ano. Vocês podem até duvidar, mas se chegarem a ouvir "Hey Ahab" vão entender os motivos que fazem deste, um dos melhores do ano!

Segundo lugar - Le Noise - Neil Young - De cara um soco nos tímpanos para fazer você entender que para ser "heavy" não é necessário ser "metal".! Algumas canções de protesto, outras de guerra, mas no fundo o que fica é uma declaração de amor de Neil à sua esposa e filhos. Um dos mais belos discos de sua carreira (e olha que ela é longa!)

Primeiro lugar - I Speak Because I Can - Laura Marling - Que dizer do disco que fez Ryan Adams esforçar-se para escrever melhor? Que dizer de canções de uma maturidade inexplicável para uma garota em seus 20 e poucos anos? Alguns puristas podem achar que sou louco, mas a única coisa próxima desta obra-prima, pensando em idade e na força das canções é o Freewheelin'Bob Dylan! Imperdível e irrevogável!


Extra: o box mais fiadaputa do ano! Bom, tinha que ser do Dylan, né? - Depois de me fazer comprar o box SACD, eles tinham que fazer isso!! - Original Mono - cruel, muito cruel...


O pior de 2010: Sinceramente? a música nacional! De fiuk a maria gadú, pode escolher o que tiver no meio e jogar na lata do lixo. Nunca vi tanta porcaria sendo gravada, elogiada, idolatrada...sinceramente, chegamos ao ponto de considerar Ivete Sangalo uma artista séria e um show na "laje" do Arnaldo Antunes algo inusitado de bom!!!??? A coisa anda feia por estas bandas (e com estas bandas!)


Cinema e TV (afinal, a TV é o verdadeiro campo de criatividade hoje em dia!)

Com um ano bem fraco em termos de cinema, mas vamos lá:

Quinto lugar - Kick-Ass - a divertida adaptação do quadrinho (que é ainda mais divertido). Bom para desopilar o fígado e se apaixonar pela Hit-Girl. De fazer inveja ao melhor Tarantino!

Quarto lugar - A Estrada - Tudo bem, pessoal ainda não aprendeu a fazer um filme baseado na obra do McCarthy, mas esse é o que melhor chega lá. E desculpa, mas só quem não tem sentimentos filiais para não se emocionar com o relacionamento de pai e filho (Pai & filhos, Deus e nós) que surge na tela escurecida pela fuligem da desesperança.

Terceiro lugar - Fim da Escuridão - Ok, está aqui por um motivo simples. Todo mundo falou tão mal do Mel Gibson, meteram tanto o pau nele, que coloquei esse filme aqui por achar um exagero toda essa perseguição e rancor. Ele pode ter lá suas falhas, mas duvido que seja o pior que há em hollywoodland...e de mais a mais, o filme é bom.

Segundo lugar - Onde Vivem os Monstros - Surpreendente filme "infantil", que revela mais de nós do que qualquer outra porcaria pseudo-intelectual que produzem por aí. Se você realmente quer saber o que se passa em dentro de nós, o que nossas fantasias revelam, não deixem de assisitir essa pequena obra-prima.

Primeiro lugar - O ano não acabou ainda, portanto vou segurar um pouco o primeiro lugar....

A pior porcaria que vi no cinema este ano foi...AVATAR !! Só mesmo tendo uns neurônios a menos para gostar dessa baboseira 3D. Roteiro péssimo, efeitos 3D para encantar quem baba na gravata, e atuações pífias fazem deste o pior filme do ano (quiça da década!!). Será que não dava para pelo menos bolar um roteiro menos idiota? Mesmo para um blockbuster é medíocre demais da conta!

Do que foi produzido na TV este ano uma pequena colocação: realmente há mais vida inteligente na telinha do que no cinemão! Vamos lá então para o melhor da máquina de fazer doido!

Quinto lugar - House - Ainda mantém o fôlego, mas tá começando a cansar, vão precisar de coragem para acabar com o personagem mais cool e sarcástico (já nem tanto) da tv, mas é preciso saber quando algo terminou.

Quarto lugar - The Pacific - Prejudicada pela existência de um Band Of Brothers, ainda assim é impactante a série que mostra as batalhas que arrolaram americanos e japoneses nas ilhas do pacífico. Notável é perceber o quanto essas batalhas foram tão ou mais violentas e cruéis do que qualquer Vietnã.

Terceiro lugar - Lie to Me - Cansando do Dr. House? Então divirta-se com o genérico Dr. Lightman, vivido pelo também britânico (mas aqui o personagem é britânico) Tim Roth. Sarcasmo, ironia, "todo mundo mente" é o mote da série. Mas há nuances interessantes, já que o personagem de Roth tem que conviver com sua ex-esposa e sua filha de 16 anos. Pena que Roth engula todos os outros atores com sua performance.

Segundo lugar - Dexter - Não dá para superar Dexter em termos de drama policial (e familiar!!) se você não nunca assistiu , não sabe o que está perdendo. E sim, é uma das séries que mais me emociona!

Primeiro lugar - Mad Men - Quer saber, é uma vergonha que a melhor série do ano tenha apenas uma temporada lançada no Brasil(uma briga entre a Paramount e a Warner parece ser responsável por isso) portanto, estamos nós bruzundanguenses, obrigados baixar pela internet essa que é uma das mais impactantes e profundas séries do momento.

O pior da TV...alguém assiste TV aberta? Então é só escolher o que lhe causa engulhos e preencher aqui (.........)

Terminada a antologia cultural, prometo para os próximos dias uma antologia de fatos marcantes do ano.

See ya!

sábado, julho 10, 2010

Algumas idéias sobre "The Beguiled"

Mathew Brady e Alexander Gardner eram os fotógrafos oficiais do Governo Unionista na Guerra Entre os Estados que devastou os EUA durante os anos de 1861/65. Mais de meio milhão de soldados morreram no conflito e incontáveis vidas civis foram perdidas. O conflito, como não poderia deixar de ser, marcou a vida de pessoas, gerou diferentes formas de se interpretar o mundo, e deixou sua marca nas canções, na literatura e até a indústria cinematográfica
teve os seus "blockbusters" sulistas: The Birth of a Nation,...Gone With the Wind e A General são os filmes representativos desta leva. O próprio Eastwood revisitaria o tema em filmes como Josey Wales. The Beguiled entra nessa categoria, obviamente não como um "blockbuster", e trás uma visão bem pouco heróica ou romantizada da Guerra. Desde o ínicio do filme, ainda nos créditos iniciais, as fotografias dos dois fotógrafos acima citados aparecem em sequência e marcam o tom, o momento histórico da narrativa: Lincoln em um acampamento, soldados em trincheiras, feridos, mortos...a guerra que devasta o país cerca o cenário desse conto de horror gótico sulista.

Após os sons de batalha e as imagens das fotografias em sépia sairem de cena, vemos Amy, uma encantadora menina, colhendo cogumelos na floresta, uma chapeuzinho vermelho sulista. Ao fundo enquanto a voz de Eastwood cantarola The Dove, uma canção da Guerra Entre os Estados:

"Take warning by me, don't go for a soldier, don't go for the army
For the dove she will leave will, the raven will come
And death will come marching at the beat of a drum
Come all you pretty fair madies who walk in the sun
And don't let your young man ever carry a gun"

A cena, como bem aponta Howard Hughes, é o típico início de um conto de fadas, mas aqui, logo o encantamento tornar-se-á um pesadelo de mentiras e dissimulações, farsas e tragédias. Ela encontra o soldado do 66º Regimento de Infantaria de Nova Iorque, John McBurney (Eastwood) ferido e o leva para a "Seminário Para Garotas Farnsworth". É lá, que cercado pelos cuidados, suspeitas, carinhos e obsessões de um grupo de mulheres que McBurney irá, através de seus próprios desejos e manipulações, encontrar seu destino.

The Beguiled é o terceiro filme da parceria Siegel/Eastwood e para muitos, a decisão de Eastwood de estrelar esta produção foi quase tão ousada e importante quanto ir para a Espanha filmar com um diretor italiano desconhecido. Don Siegel considerava esse, dentre todos os filmes que dirigiu, o seu favorito.

Jogando com a visão do cavaleiro solitário que chega à cidade e de forma "mágica" reestabelece a ordem, aqui a trama é justamento o oposto: o estranho que chega trás em seu bojo apenas o caos, destruindo a ordem e abrindo portas para pecados guardados e tentações futuras, também aqui, ao contrário destes personagens sem passado, é nos revelado o seu verdadeiro passado.Não, o "Blue Belly" não é o que diz ser...ora um quaker inocente, ora um cavaleiro em armadura para resgatar uma donzela virgem daquela fortaleza monástica, McBurney é na verdade um soldado covarde e cruel, não tem respeito pelas terras que conquista e queima as colheitas de fazendeiros sulistas (o que remente às táticas do general Sherman, um dos maiores carniceiros de qualquer época, de qualquer guerra, responsável pelo incêndio da cidade de Atlanta que é retratado em ...Gone With the Wind), além de não ser nem um pouco pudico ou discreto, McBurney usa de seu charme e presença para seduzir aquelas mulheres abandonadas e temerosas.

Muito se escreve sobre esse filme da perspectiva do homem fragilizado e emasculado (quiça, castrado!) diante da feminilidade traída (e por vezes, histérica), mas acredito que se trate mais do que isso (até por conta dos futuros questionamentos que Eastwood traria às telas), e para isso, trago uma lição adaptada da análise que Elizabeth Kantor faz da obra de Jane Austen: a miséria humana não é causada por estruturas tradicionais ou genêro, mas por pecados indivíduais (e como há pecados neste filme: assassinatos, incesto, estupro até uma certa dose de profanação). Mais, (e ainda no universo de Austen adaptado para esse filme), há uma evidente falta de auto-controle feminino no filme mas, sejamos justos, há uma abdicação de responsabilidades próprias de um homem no filme (lembrem-se que no filme ele apenas engana e trapaceia), e quando ao final do filme há a contrição do personagem de Eastwood e a aceitação de seu papel como Homem, já não há mais tempo e as rédeas do destino estão soltas.

E para encerrar, e desfazer a imagem de apenas um filme excêntrico nas carreiras de Siegel e Eastwood, gostaria de homenagear o espírito sulista com uma citação de sua maior escritora; "...there was a good deal of grotesque (in American Literatura) which came from the frontier and was supposed to be funny; but our present grotesque characters, comic thought they may be, are at least not primarily so. They seem to carry an invisible burden: their facaticism is a reproach, not merely an eccentrecy."

quarta-feira, julho 07, 2010

Algumas idéias sobre Coogan's Bluff

O filme que marca a transição de Eastwood do cowboy solitário para a cidade grande, é também o primeiro filme com o diretor Don Siegel, que viria a tornar-se a segunda e talvez a principal influência no futuro de Eastwood no modo de lidar com a produção e direção de filmes (a primeira influência é Sérgio Leone). Juntos, fizeram dois dos mais memoráveis filmes do cânone eastwoodiano: Dirty Harry e Escape From Alcatraz.

Siegel começou a trabalhar na Warner em 1934, onde tornou-se responsável pelo departamento de montagens do estúdio (a montagem da abertura do filme Casablanca é dele), mais tarde, torna-se diretor, entre seus filmes, o Invasores de Corpos original, Hell is for Heroes com o iniciante Steve McQueen e com Lee Marvin em The Killers, como se não bastasse, dirigiu ninguém menos do que Elvis Presley no filme Flaming Star. Sua marca registrada era o fato de trabalhar dentro do orçamento (muitas vezes pequeno) e filmar de forma rápida e prática. A falta de um diretor aceitável, os vários roteiros insatisfatórios e um prazo curto para as filmagens, levaram Siegel ao set de Coogan's Bluff. E assim, a uma das parcerias mais importantes do cinema teve início.

O plot do filme é simples, um policial do Arizona (não é o Texas!) vai a Nova Iorque fazer a transferência de um preso para ser julgado no Arizona. Não podendo fazer a transferência de imediato, afinal o preso está em uma prisão-hospital recuperando-se de uma viagem de LSD, Coogan é obrigado a conviver com a cidade grande e esperar a liberação do bandido. Mas como Coogan acha que pode resolver as coisas a seu modo, termina por dar um blefe (daí o título do filme...mas pode ser também por conta da luta final, que ocorre em um parque em NY chamado Coogan's Bluff (ribanceira)). Mas as coisas saem do controle e ele vai ter que caçar o sujeito na urbana e decadente Nova Iorque.

Coogan, com seu jeito hora Wyatt Earp, hora Buffalo Bill, termina por ser a antítese mesma da cidade: as passagens dele interagindo com a fauna nova-iorquina apresenta cenas do mais absoluto politicamento incorreto. Feito em 1968 o filme vai totalmento contra o zeitgeist do momento. E a história é explícita neste ponto, afinal uma trama onde o herói é um hillbilly e os vilões estejam envolvidos com a sub-cultura hippie da época não tem como deixar mais claro de que lado o herói está.. (há uma cena de Coogan anda em meio a uma festa na boate "The Pigeon-Toed Orange Peel" cercado por hippies, gays e drogados, com projeções passando ao fundo cenas de fimes à la Warhol, (inclusive uma curiosa projeção de uma tarântula gigante, cena tirada de filme B que Eastwood fez nos anos 50), esta momento no filme é um dos mais ousadas defesas do indíviduo contra a massa left-wing já feita no cinema)... Mas também temos os conflitos com outros temas: a burocracia, que impede a rápida transferência do prisioneiro, o psicologismo que tenta compartimentar o Homem (é hilária a conversa de entre Coogan com uma psicóloga do departamento, que tenta analisar o comportamento dele, em um momento chamando-o de enigmático para o que ele responde"enig-what?", etc.

Howard Hughes, crítico de cinema e autor de Aim For The Heart - The Movies of C. Eatwood, também aponta que no tratamento aos criminosos é possível ver os primeiros indícios de Dirty Harry e há trechos do diálogo que irão ecoar depois na voz do detetive de São Francisco . Em uma cena, Coogan ameaça um hippie (Albert Popwell) que aponta um canivete para ele com a frase "Mister Wonderful whatever-your-name-is. You better drop that blade, or you won't believe what happens next - even while it's happening", curiosamente, Albert Popwell é o assaltante do início de Dirty Harry, o "punk" com sorte. Outra frase que remete diretamente a Harry é quando, ainda no Arizona, seu superior diz para ele que, continuando a agir como um "lonesome boy" ele irá ter que fazer "every lousy one-man job that comes along".

Com cenas de ação, ironia e um Eastwood ávido em observar e aprender com Siegel, Coogan's Bluff contém elementos que tornar-se-ão marca registrada da parceria Siegel/Eastwood. Uma boa trama, uma direção contida e prática, não perdendo tempo com psicologismos e discursos vazios. É simples, direto e funciona. Futuramente, obras-primas nasceriam desse método.

segunda-feira, julho 05, 2010

La storia de un soldato

Algumas idéias sobre "The Good, the Bad and the Ugly"

"Quando eu era pequeno, sonhava com westerns, heróis e bandidos..."

Sérgio Leone

"The Good, the Bad and the Ugly" foi o primeiro western, o primeio filme de Sérgio Leone e o primeiro filme de Eastwood que assisti. Isso foi em 1984 e acabara de ir morar com meu pai, com quem não vivia desde os 3 anos de idade. Não sei como, acredito que por causa de uma propaganda na TV anunciando a exibição do filme, meu pai disse que gostava muito dele.

O que sei é que fiquei a madrugada (pois o filme passou em uma das sessões do antigo Corujão, da Globo) encantado, ou melhor, embasbacado, pela jornada desses três cowboys tão estranhos, Angel Eyes, Tuco e Blondie (respectivamente interpretados por Lee Van Cleef, Eli Wallach e Clint Eastwood) através das paisagens ora desérticas, ora cheia de rostos que eram em si mesmos, paisagens marcadas pelo tempo.

A história se passa durante a Guerra entre os Estados (vulgarmente, Guerra Civil Americana), quando as forças Confederadas comandadas pelo General Sibley (um inapto, responsável pelo fracasso da expedição: uns dizem que por culpa do alcoolismo, outros, por covardia), invandem o Novo México a partir do Texas. Neste cenário devastado, encontraremos as três personagens, que, por coincidência, brutalidade ou destino, ficam sabendo que duzentos mil dólares em moedas de ouro estão enterrados em um cemitério.

Mas, para chegar ao ouro (e ao cemitério, isto é ao fim de tudo) é necessário antes, que eles atravessem experiências e situações que vão, como em toda boa história, revelando e afetando a personalidade deles.

E aqui, Leone já não tem as limitações orçamentárias de seus filmes anteriores, e com um grande estúdio por trás, floresce de vez o seu estilo, permitindo que a jornada seja grandiosa, quase homérica.

O filme é preenchido com uma sinfonia de sons naturais: é possível ouvir o vento soprando a areia do deserto, o ranger de portas, lonas sendo agitadas, o arrastar dos pés e o tilintar de esporas, o som das armas de fogo sendo engatilhadas. Toda essa sinfonia serve para abrir espaço para um dos mais bem utilizados elementos do filme: o silêncio, que tanto quanto a música orquestral (composta novamente por Ennio Morricone) é parte importante na criação da tensão ou preparação para a explosão de violência que muitas vezes se segue.

O impacto das imagens e dos rostos (imagino o que é ver esse filme em um cinema e não apenas na televisão), mesmo em uma tela pequena, é magnífico, devastador. Leone contrapõe grandes paisagens, a vastidão do oeste (não temos como acreditar que aquelas paisagens não são do Oeste Americano de John Ford, mas como diz o critíco e biógrafo de Eastwood, Richard Schickel, o que importa é que o diretor consiga uma "plausibilidade emocional" e não factual, assim, para nós, aquilo é o Novo México), essas tomadas, onde a vastidão parece engolir as personagens, de repente é cortada para um rosto em close-ups nunca vistos ou usados de maneira tão "fotográfica" ou estática no cinema (salvo nos próprios filmes de Leone). Para Leone, mesmo o mais insignificante dos extras merecia ter um rosto, merecia ter uma história revelada por suas rugas ou cicatrizes.

Para completar a narrativa, há ainda a impressionante música de Ennio Morricone, que compos a maior parte da trilha sonora antes de ser filmada qualquer cena do filme, o que levou muitos críticos a acreditarem na concepção operística do mesmo. Usando elementos modernos, Morricone foi capaz de captar e recriar a sinfonia de sons naturais do filme. O maior exemplo disso é no início do filme, onde ouvimos um coiote uivar ao fundo, dando o fraseado para a entrada de um dos temas mais reconhecidos da história dos westerns: "Ay-ey-ay-ey-ahhh!" e depois o "Wah-wah-wah!", que até hoje tem o poder de transportar o ouvinte para uma era de foras da lei, onde "as histórias tinham a liberdade para expressar qualquer tipo de ação, boa, má ou mais ou menos", nas palavras do próprio Leone. Mas outros temas são trabalhados magnifcamente, "La Carroza dei Fantasmi", "La Storia de Un Soldato" e o "Il Trielo" reforçam a mitologia do filme de forma inquestionável.

Uma das passagens mais tocantes e ao mesmo tempo violentas do filme (à época, críticas chegaram a dizer que a cena era de um masoquismo inaceitável), usa a canção "La Storia de Un Soldato", para abafar a tortura que o personagem de Tuco sofre nas mão do Sargento Wallace (Mario Brega) em um campo de concentração para soldados confederados. Esta cena é uma referência direta aos campos de concentração nazistas. Este tipo de referência será levada a novos patamares e discussões no filme "Duck, you sucker!", uma reflexão sobre a destruição causada pelas revoluções na vida e alma dos Homens.

Abaixo, a letra da música:

"Bugles are calling from prairie to shore,
"Sign up" and "Fall In" and march off to war.
Blue grass and cotton, burnt and forgotten
All hope seems gone so soldier march on to die.

Bugles are calling from prairie to shore,
"Sign up" and "Fall In" and march off to war.
There in the distance a flag I can see,
Scorched and in ribbons but whose can it be,
How ends the story, whose is the glory
Ask if we dare, our comrades out there who sleep."

A tríplice jornada (que leva aproximadamente 8 meses para ser completada), acompanha os personagens através de cidades devastadas pela guerra, desertos escaldantes e mortais, pequenos mosteiros que servem de abrigo para soldados mutilados, campos de concentração e por fim, a um vasto cemitério e a um caixão cheio de ouro.

Nesta jornada, as personalidades das personagens vai revelando-se para nós. Angel Eyes torna-se cada vez mais bruto e cruel, um ganâncioso e mesquinho assassino de aluguel. Tuco Ramirez, é o personagem mais interessante (e interpretado de forma dinâmica e explosiva por Eli Wallach, ele termina roubando o filme), o que mais se aproxima de nós, em sua amoralidade, em sua forma de buscar sobreviver e adaptar-se às situações mais extremas. Também é o único personagem que tem um passado, uma família (mesmo que fragmentada) e um apreço pela religião (o final, com Tuco equilibrando-se em uma cruz no cemitério, é mais um indicador da importância da religião católica para Leone, por mais fragilizada que ela se encontre em suas histórias). E Blondie, o personagem de Eastwood, é provavelmente o mais compassivo de seus personagens cowboys. Como bem nota Howard Hughes em sua análise da interpretação de Eastwood, aqui há "mais segurança e menos esforço, ele domina os maneirismos do personagem de forma completa...o meio sorriso, os longos silencios, o cigarro em sua boca. Mas ao mesmo tempo encontramos momentos de maior humildade e humanidade, que mesmo nos personagens (cowboys) mais maduros de Eastwood seriam raros"

Este foi o último trabalho de Leone com Eastwood, eles não trabalhariam juntos e por muito tempo, Leone guardou mágoas com Eastwood por conta da recusa deste em trabalhar novamente nos projetos do diretor. Seja por estar cansado do mesmo personagem, seja por não querer envolver-se em projetos maiores (ou gigantescos, para ser justo com o ego de Leone), sabe-se que pouco antes da morte de Leone, eles encontraram-se e tiveram bons momentos juntos. Unforgiven, a obra-prima de Eastwood foi dedicado a doisde seus mestres, Donald Siegel e Sérgio Leone.

Essa é uma apresentação de um cineasta que mesmo apaixonado pelo Western, ousou violar a forma e a tradição deste, aprofundando os temas e a estética, revitalizando o gênero e tornando-o moderno. Dessa forma, Leone consegue aprofundar também temas como ética, religião, amizade e família de forma a resgatar esses elementos na história de seus personagens e sua importância para a vida cotidiana.

Mas isso tudo, toda essa análise acima, nada mais é do que tentar transpor o sentimento, a emoção, a fantasia que invadiu a mente de um garoto há muitos anos atrás, e que, fazem parte da minha vida até hoje. Mesmo através daquelas imagens de um colorido vago (era uma velha TV a do meu pai), a força do filme, sua mitologia e magnitude deixaram uma indelével marca e entraram para o meu cânone pessoal.

E sempre que vejo o filme,ao final, "Il Trielo" ecoando, Blondie cavalgando na vasta paisagem e as últimas palavras de Tuco Ramirez, tenho vontade de levantar-me, aplaudir e gritar "Bravo! Bravo! Bravo!" "Grazie Signore Leone!"...e refletindo neste momento, ainda tenho que agradecer ao meu pai por ter, sem saber, mostrado uma das maiores obras-primas do cinema para seu filho.